Do LÍDER ao fenômeno da LIDERANÇA – Uma análise estrutural destes dois conceitos

Há uma diferença muito importante entre as palavras LIDERANÇA e LÍDER. A primeira caracteriza um comportamento, um processo social inevitável em quaisquer ambiências. A segunda, uma posição hierárquica, formalizada normalmente por designação e sem a existência de um processo natural que emerja da própria equipe.

Em ambientes corporativos e, de forma ainda mais crítica, nas organizações que prestam serviços ao público, a concepção de LIDERANÇA é frequentemente distorcida pela figura do LÍDER. Confunde-se o fenômeno, um processo complexo de direcionamento e engajamento coletivo, com o indivíduo, a pessoa que ocupa uma posição hierárquica. Esta confusão, que permeia grande parte dos modelos de gestão tradicionais, é mais do que um equívoco semântico; é uma falha estrutural que compromete a agilidade, a resiliência e, em última instância, a capacidade da organização de alcançar a Primazia.

Por que, então, essa persistência em atrelar a LIDERANÇA a um único indivíduo ou a um pequeno grupo no topo? A resposta reside em um paradigma de comando e controle, o “Modelo Alfa”, como rotula o autor Niels Pflaeging, que inibe a distribuição inteligente de poder e a mobilização da inteligência coletiva.

Este artigo propõe uma análise crítica dessa distinção, ancorada na lógica do Movimento alternativo denominado de Beta Codex, do mesmo autor Niels Pflaeging, nas literaturas relacionadas a Holacracia (também conhecidas como Sociocracia e/ou Autogestão) e também em nosso Movimento em prol da Primazia da Gestão que defendem que a LIDERANÇA seja concebida como um atributo sistêmico, e não uma qualidade pessoal exclusiva do LÍDER.

A Ilusão do LÍDER Indispensável: Quando o indivíduo prevalece sobre o sistema

O modelo tradicional de gestão, amplamente influenciado pela visão industrial do século XX, posiciona o LÍDER como o epicentro de todas as decisões, a fonte primária de direcionamento e o principal responsável pelos resultados. Esta figura, muitas vezes idealizada como carismática e visionária, é vista como a chave para o sucesso. Contudo, essa concentração excessiva da LIDERANÇA na pessoa do LÍDER gera patologias estruturais severas:

  • Vulnerabilidade sistêmica: A dependência de um único indivíduo (ou de alguns) torna a organização frágil. A saída ou falha do LÍDER pode gerar vácuos de poder e desorientação estratégica, expondo a fragilidade do sistema;
  • Gargalos decisórios: Todas as iniciativas e aprovações convergem para o LÍDER, criando lentidão, inibindo a autonomia responsável e desconectando as decisões da realidade operacional, onde o conhecimento real reside;
  • Subutilização do potencial coletivo: A força de trabalho, sem autonomia e protagonismo para exercer a LIDERANÇA em seus próprios domínios, torna-se passiva e desengajada. A inteligência e a criatividade acabam sendo reprimidas, ou ainda gerando acomodamento, pela necessidade constante de validação superior do LÍDER;
  • Cultura de dependência e aversão ao risco: Onde o LÍDER é o único a arcar com os louros e as consequências, a experimentação e a proatividade são naturalmente inibidas nos demais níveis. O erro é punido, não aprendido, e o poder da experimentação negligenciada;

Esta visão unilateral da LIDERANÇA, centralizada na figura do LÍDER (ou de LÍDERES), contraria a complexidade e a dinâmica do ambiente contemporâneo, onde a capacidade de adaptação e a inteligência distribuída são imperativos. Não se trata de uma falha de caráter do LÍDER, mas de uma limitação intrínseca ao modelo vigente que o coloca em uma posição insustentável.

Nos REPG temos o Pilar 2.2.4 que trata especificamente da Distribuição de Poder onde a LIDERANÇA é um comportamento presente em cada papel da ambiência de Governança Holacrática, de forma que termo Alta Direção foi simplesmente banido. Este pilar dos REPG confronta diretamente a ideia de que a LIDERANÇA reside exclusivamente no topo, apontando para a sua natureza comportamental e distribuída em cada papel.

LIDERANÇA como fenômeno sistêmico: A perspectiva do Movimento Beta Codex e da Holacracia

O Movimento Beta Codex, de Niels Pflaeging, surge como uma crítica contundente aos modelos de gestão que ele chama de “Alfa”, caracterizados pela hierarquia, comando e controle, e pela centralidade do LÍDER. Em contraste, o “Modelo Beta” dele propõe uma reengenharia conceitual, onde a LIDERANÇA é compreendida não como um atributo pessoal do LÍDER, mas como um fenômeno sistêmico que permeia a estrutura, os processos e a cultura da organização.

Nesta perspectiva, o LÍDER é apenas um papel – uma função dentro de um sistema maior, e não a totalidade da LIDERANÇA. A LIDERANÇA, portanto, é a capacidade do sistema de:

  • Autodirecionar-se: Estabelecer propósitos claros e desdobrá-los em ações coordenadas, independentemente de uma única fonte de comando;
  • Auto-organizar-se: Permitir que as equipes e os indivíduos, em seus respectivos papéis, tenham desenvolvido o protagonismo, a autonomia e a responsabilidade para organizar seu trabalho e tomar decisões no ponto de atuação;
  • Adaptar-se continuamente: Promover uma cultura de experimentação, aprendizado e processamento de tensões, onde a mudança é abraçada e não resistida;
  • Distribuir autoridade e responsabilidade: Instituir mecanismos formais para que o poder decisório seja exercido por múltiplos atores, de acordo com suas competências e o contexto.

A LIDERANÇA é uma propriedade emergente de um sistema bem desenhado, e não um dom individual. O LÍDER, nesse cenário, não sucumbe, seria um erro retirá-lo das ambiências, mas ele funciona muito mais como um facilitador, um treinador, um mentor, um guardião de princípios e da Constituição Organizacional, que capacita as pessoas a serem melhores em sua atribuição autônoma, protagonista e empreendedora.

Nos REPG temos o Pilar 2.2.13 que trata sobre Governança Colaborativa e Holárquica que determina a distribuição de autoridade e incorporação de capacidades evolucionárias nos modos de realizar negócios, exigindo para tanto uma governança colaborativa alinhada aos pressupostos da holarquia (termo criado pela primeira vez por Arthur Koestler no livro O Fantasma da Máquina). Este conceito de governança reforça a LIDERANÇA como um imperativo distribuído, alinhando-se à visão Beta Codex de que a autoridade reside no processo / sistema de governança, e não exclusivamente na pessoa do LÍDER.

A nova lógica estrutural: Como o LÍDER se transforma em LIDERANÇA distribuída

Para transitar do modelo LÍDER centrado para a LIDERANÇA sistêmica é preciso uma reengenharia comportamental e estrutural profunda. Um arcabouço metodológico se torna a chave para formalizar e sustentar essa transformação, garantindo que a LIDERANÇA seja um ativo organizacional, e não um risco individual.

Um referencial como os REPG – Referenciais de Exemplaridade da Primazia da Gestão oferece a lógica para essa arquitetura:

  • Distribuição de Poder (Pilar 2.2.4): Os REPG postula que “A LIDERANÇA é um comportamento presente em cada papel do ambiente holacrático”. Isso significa que a autoridade não é um monopólio, mas um atributo intrínseco a cada papel organizacional. O LÍDER deixa de ser o único polo de comando para se tornar um catalisador da LIDERANÇA que emerge de cada papel, quebrando a dependência da “Alta Direção” e promovendo “comportamentos protagonistas, autônomos e empreendedores em todos os demais atores da força de trabalho”;
  • Tomada de Decisão por Consentimento (Pilar 2.2.5): Essa metodologia de decisão, fundamental na abordagem holacrática, formaliza a LIDERANÇA distribuída. Em vez de “aprovações” que dependem da hierarquia e podem ser carregadas de “subjetividade e vaidades”, o consentimento valida propostas pela “ausência de objeções” que possam prejudicar a realidade atual e pelas “regra de negócio”. A LIDERANÇA se torna, assim, um processo orgânico, ágil e menos dependente de um LÍDER específico;
  • Holacracia e Cultura Organizacional (RT 4): Este Referencial Temático dos REPG detalha como a organização “estrutura sua preparação para a mudança cultural” de uma “estrutura vertical e hierárquica clássica” para uma “estrutura holacrática e horizontal”, desenhada por meio de círculos e não por meio de organogramas. A LIDERANÇA aqui é formalizada por uma “Constituição Formal” que redistribui a autoridade e define “papéis” com propósitos, domínios, artefatos e responsabilidades claras. O LÍDER não desaparece, mas sua função se transforma: de ditador de diretrizes a instrutor e guardião do processo de LIDERANÇA que emana do sistema de governança;
  • Pensamento Consiliente (Pilar 2.2.1): Esta evolução do pensamento sistêmico, que “valoriza a polimatia” e a “experimentação de novas experiências”, é a base cognitiva para uma LIDERANÇA distribuída. Ela incentiva a dúvida e a curiosidade sobre as certezas, desafiando a visão de um LÍDER que detém todas as respostas e abrindo espaço para a inteligência coletiva.

A LIDERANÇA, nesse contexto, torna-se uma propriedade do sistema, formalizada em sua nova arquitetura de governança, e não uma característica exclusiva do LÍDER.

A distinção clara entre LIDERANÇA e LÍDER, e a consequente reengenharia estrutural para a LIDERANÇA distribuída, são imperativos para organizações que buscam a Primazia da Gestão. Este modelo fomenta:

  • Agilidade e Resiliência: A capacidade de responder rapidamente às mudanças e de absorver choques sem depender de um único ponto de falha;
  • Inovação contínua: Ao empoderar os atores da força de trabalho, a organização libera o potencial criativo e a capacidade de experimentação em todos os níveis;
  • Engajamento e Responsabilidade coletiva: A LIDERANÇA, sendo um comportamento de todos, gera um senso de pertencimento e responsabilidade compartilhada pelo propósito;
  • Sustentabilidade do Valor: A Primazia não é um pico a ser alcançado por um herói, mas um patamar sustentado por uma arquitetura de gestão que continuamente otimiza o fluxo de valor ao cidadão.

Conclusão: A LIDERANÇA transcende o indivíduo, reside no sistema

A confusão entre LIDERANÇA e LÍDER é uma das maiores barreiras à Primazia da Gestão. Ao concentrar o fenômeno da LIDERANÇA em um único indivíduo ou a um grupo de LÍDERES, as organizações se tornam vulneráveis, lentas e incapazes de mobilizar plenamente seu capital intelectual. O Movimento Beta Codex e os fundamentos da Holacracia, ao dissociar a LIDERANÇA do LÍDER, propõe uma reengenharia radical: a LIDERANÇA como um atributo do sistema e não do indivíduo, ou de um grupo de indivíduos heróicos.

Um arcabouço metodológico que formalize essa distribuição de poder e decisão, como os REPG, não apenas diagnostica essa patologia, mas oferece a lógica estrutural para a sua superação. Ele permite que a LIDERANÇA seja um comportamento exercido em cada papel, que as decisões sejam tomadas por consentimento e que a governança seja colaborativa.

Não se contente com uma LIDERANÇA que reside apenas em uma pessoa ou em um grupo de pessoas. Desafie o modelo obsoleto do LÍDER onisciente e construa uma gestão que libere o potencial coletivo, onde a LIDERANÇA é um fenômeno sistêmico que impulsiona a organização à Primazia tratando as pessoas como adultas e não como crianças infantilizadas que precisam de tutores o tempo todo. A verdadeira força está na inteligência que flui por todo o sistema, e não apenas no topo.

Por Orlando Pavani